2011/03/21

Passeio Místico (19 e 20 Março 2011)

Por: Jorge Lami Leal


Na procura de itinerários alternativos, a estrada mais óbvia para sair do Algarve acaba por ser a menos utilizada. Decidimos por isso seguí-la. Fizemos o IC1 a bom ritmo, com apenas uma paragem para pequeno-almoço e outra para encher o depósito. Não havia pressa de chegar, já que a nossa aventura “mística” só começaria pouco antes da hora de jantar. Entrámos em Lisboa pela Ponte 25 de Abril e dali tomámos um pequeno desvio para, pouco depois, seguir pela Marginal até ao Estoril. A EN6 é uma estrada que considero mítica. É muito interessante fazê-la de moto pela impactante moldura atlântica que nos acompanha a Sul e todo o enquadramento arquitectónico construído, os palacetes, vivendas antigas e velhos fortes militares que tornam a experiência de condução muito especial. Problema encontrado: trânsito excessivo. Sábado e com bom tempo, traduz um grande afluxo de pessoas e carros, notando-se nas calçadas junto às praias, cheias de pessoas a aproveitar os raios de sol que finalmente atingiram o nosso país, depois de tantos meses de frio e chuva. Ainda assim, limitaram o prazer que habitualmente retiro desta estrada.

O tempo apertava e por volta da hora marcada, o grupo começou a aparecer. Algumas dezenas de motos. Alguns cumprimentos depois e estávamos todos preparados para sair do Estoril em direcção a Sintra, onde nos esperava o jantar. Saímos Marginal afora, passando Cascais, sempre junto à costa – infelizmente já sem luz suficiente para apreciar o mar. Passámos Malveira da Serra e Colares, até ao nosso restaurante, muito típico, mas do qual não retive o nome. Apenas o espaço, rústico e castiço. Seguiram-se horas de conversas cruzadas, como que simulando curvas na estrada, umas à direita, outras à esquerda, lá enchemos a barriga e preparámo-nos para o que se seguiria.



Jantar terminado, novamente para a estrada, por Sintra, pelo coração de Sintra, até à Quinta da Regaleira. Não sabíamos bem o que íamos encontrar, apenas que a lua não estava tão próxima da Terra há quase duas décadas. Era um bom prenúncio. E foi. Estacionar umas dezenas de motos e alguns carros foi tarefa que levou o seu tempo, mas finalmente começámos a entrar na Quinta que deu o mote e o tema a mais esta aventura: Passeio Místico.












Não pretendo descrever o que se passou nesta propriedade tão mística e iniciática. Apenas que ficou a promessa de lá voltar de dia, já que se por um lado apreciamos as descrições e a conversa do nosso guia, envoltos numa lua cheia resplandecente e, aqui e ali, encobertos por uma penumbra potenciada pela vegetação e pelas construções e estatuária que pululam um pouco por toda a parte, por outro não percebemos totalmente a integridade do espaço, conforme foi concebido originalmente. Faltava luz para isso. Que boa desculpa para regressar!


Fomos convidados a percorrer um enigmático “caminho” cheio de simbologia e significados, enclausurados em si próprio e progressivamente desconstruídos pelo nosso guia. As referências à alquimia, à Rosa-Cruz, aos Templários e à Maçonaria estão ao virar de cada “esquina”. Cada pedra tem ali um significado próprio, estudado, reflectivo, cada degrau manifesta uma justificação, uma analogia própria.






O “caminho” teve o seu momento alto no poço iniciático. Àquela hora, já devia seguramente passar da meia-noite, com a luz da lua, forte, penetrando poço adentro, a “massa humana” movendo-se lenta e compassadamente, com pingos da água que se infiltra naquelas rochas a cair sobre nós, fomos subindo degrau a degrau os nove patamares alegóricos da viagem de Dante (A Divina Comédia). Percorremos simbolicamente os nove círculos do sofrimento, do inferno: o limbo, a luxúria, a gula, a ganância, a ira, a heresia, a violência, a fraude e a traição. Alguns de nós ainda conseguimos subir ao “Céu”, para regressar ao grupo pouco depois.




Muito mais do que conhecer a história da Quinta da Regaleira, os seus significados escondidos, importantes sem dúvida para ganhar envolvência e perceber a ausência do acaso, até receber uma certa proposta de anti-caos, foi (para mim) secundada face ao convite que nos fora feito pelo nosso guia: aproveitar esta viagem como do conhecimento interior. Aproveitei mais esta parte, desprendendo-me por algumas horas de ideias e da interpretação mais fácil que fazemos da realidade, para contemplar prioridades e acima de tudo relativizar o que nos envolve no quotidiano como algo momentâneo e fugaz. Isso e alguma luta com a minha máquina fotográfica, que teimava em não traduzir a realidade conforme a perspectiva que pretendia… até que finalmente vi a luz… verdadeiramente a luz.
























Já saímos bastante tarde da Quinta, novamente para cima das motos e por estradas bem alternativas, rumámos ao também místico Cabo da Roca, o ponto mais ocidental do continente europeu. Se só isso não fosse por si próprio suficiente e distintivo, Camões esclarece-nos do resto, na sua obra imortal, ao escrever sobre este ponto que é: “Onde a terra se acaba e o mar começa“. É por isso onde as viagens começam. Onde Portugal começou, ainda que esse Portugal já não seja. Foi ali que a epopeia marítima portuguesa simbolicamente teve a sua génese. Daquele ponto ou regressamos para trás, ou seguimos para um mundo novo. Com as motos a descrever um semi-circulo (iniciático?) sobre o padrão de pedra que se ergue no cabo, para quem o quiser entender, estivemos um tempo à conversa, sorvendo a luz forte reflectida pela lua cheia.

Seguiu-se uma visita ao Farol do Cabo da Roca, onde nos esperavam caixas e mais caixas de Queijadas de Sintra, cortesia do nosso amigo Carlos, um chocolate quente e muita conversa (foi um momento único e não sentimos o tempo passar). Voltámos para cima das motos pouco depois das 3 da manhã. Dali até ao hotel foram mais umas dezenas de quilómetros de estradas e curvas, já num ritmo mais elevado, considerando que éramos apenas 4 ou 5 motos e praticamente não havia trânsito.


















A manhã de Domingo foi mais calma para nós. Enquanto o resto do grupo foi visitar o Centro de Recuperação do Lobo Ibérico, aproveitámos para caminhar um pouco pelo Estoril e fizemo-nos à estrada pouco depois, para calmamente nos dirigirmos ao restaurante que marcaria o final deste fim-de-semana “místico”. Novamente pela Serra de Sintra adentro, alguma preocupação até passarmos o desvio do Cabo da Roca, considerando o grande número de motos a circular e alguns motociclistas com menos respeito pelo próximo. Mas sem dúvida dando um colorido diferente à estrada. Por entre sombras e recortes da serra, seguimos por entre povoações, pequenas “vendas” ambulantes de produtos agrícolas, até ao concelho de Mafra, mais concretamente até ao restaurante “O Gato”, na Malveira. O almoço foi “daqueles”, com um buffet de comida regional, queijos e sobremesas.










Depois das despedidas, regressámos à estrada e de novo em direcção ao Algarve, nas calmas. O tempo parecia estar parado. A temperatura era a ideal para andar de moto. Numa palavra: perfeito.






Obrigado a todos os que organizaram este magnífico fim-de-semana, nomeadamente à Luísa, ao Ricardo e ao Rui. A (minha) única decepção do fim-de-semana foi o peso que a balança marcava na segunda-feira pela manhã! Tudo o resto esteve ao nível que esta “equipa” já nos habituou!