Dia 1 – Viagem até Ronda
Com uns e-mails trocados nos dias anteriores, o percurso para Ronda foi decidido. Nada de rotas directas – não seriamos nós errantes.
A azáfama do dia anterior, a organização dos sacos de viagem, carregar as baterias dos gadgets, arrumar tudo no relativo pouco espaço que a moto dispõe para as “tralhas”, terminou numa noite mal dormida, devida à constipação que entretanto apanhei. Como gosto mais de viajar do que de estar doente, decidi controlar a segunda, permitindo-me prosseguir com a primeira. Assim foi!
O “dia 1” começou cedo e calmo. Seguimos de Faro para a Pastelaria Veneza, em Tavira, que ficara definida como ponto de encontro de mais uma aventura. Programáramos arrancar pouco depois das 9 horas… mas não conseguimos… entre a conversa que seguia solta e, depois, já com o nosso amigo Rogério, que nos “empresta” semanalmente a sua pastelaria para as nossas tertúlias, lá ficamos a comer e a conversar. Que boa maneira de começar o primeiro dia. Havia tempo, já que o grupo de Lisboa planeara sair pelas 9 horas, dando-nos umas horas a mais para um trajecto diferente.
O grupo que partiu do Sul, desta vez, era constituído apenas por dois casais em duas motos. Uma BMW R1200 RT e uma R1200 GS Adventure. Quatro amigos que já partilharam muitos quilómetros de estrada e de convívio, augurando uma viagem sem problemas. Não é essencial viajar com amigos. Mas é muito mais agradável, como se veio aliás a provar não só nesta viagem, como em todo o fim-de-semana.
Quando nos montamos em cima das motos, certamente já passavam das 10 horas. Mas as horas foram algo com que não nos preocupámos nestes dias. Que sorte!
Saímos de Tavira pela Via Infante de Sagres. Ao aproximar-me da Ponte do Guadiana, ainda a pouco quilómetros, reparei nos dois imponentes pilares do tabuleiro da ponte, que guardam a fronteira rodoviária mais a Sul de Portugal. Sobressaem na paisagem, ainda sem rio à vista, mas logo ali não pude deixar de pensar que estava quase a deixar o meu “al-Gharb al-Andaluz”.
Antes de sair de Portugal, uma fila de trânsito parada, algumas viaturas da “Guardia Civil” a entrar em Portugal, deixava perceber um acidente ou alguma acção policial. Não chegamos a perceber o que aconteceu, pois quando o trânsito retomou a normalidade, não vimos nem acidente, nem polícia. Pouco depois, numa das primeiras saídas, deixamos a Via do V Centenário, em direcção às antigas minas de Tharsis e respectivas curvas da “Sierra Tarse”. Interessava-nos particularmente evitar auto-estradas e vias rápidas, assim como passar por estradas andaluzas típicas… foi o que fizemos.
Alguns troços de estrada estão maus. Ou melhor, as estradas estão muito boas, apesar de certos troços, alguns com dezenas de quilómetros, que dão origem a fantásticos estradões de terra compacta, ideais para motos trail. Era o caso da moto dos meus companheiros de viagem, não era o caso da minha, mas… portou-se à altura e fez tudo sem se negar a nada. Apenas um ligeiro slide numa zona com lama (acho que não fui o único). Nada de especial, uma diminuição de acelerador e, assim que a roda traseira voltou a ter tracção, nova aceleração e continuamos.
Alguma lama que teimou “pintar” a minha RT
Alguns troços mais complicados
O fim dos estradões à vista
As minas de Tharsis, que remontam à pré-história, continuaram a ser exploradas com os fenícios, cartagineses, romanos. A exploração foi apenas interrompida nas ocupações godas e árabes. A exploração mineira regressa nos séculos XVIII e XIX. O século XX marca o fim da exploração mineira daquela zona. Ficaram no entanto os aterros, as lagoas, assim como inúmeras máquinas mineiras e de transporte, espalhadas pelas rotundas e beira de estrada, transformando-as num autêntico museu vivo e interpretativo do que foi aquela zona e a importância que teve para tantos povos ao longo de tantos séculos.
Dali seguimos até à Serra de Aracena. A estrada é emblemática, para andar de moto então é muito especial. Bom piso, melhores paisagens, que se transfiguram entre as bem tratadas (e intermináveis) explorações agrícolas, aos terrenos escarpados, com formações rochosas que emprestam à paisagem um encanto especial.
No sinal deveria ler-se em alternativa: “Curvas Muy Buenas”…
Não que fosse uma preocupação nossa, até porque viajamos sempre equipados para chuva e frio, mas a perspectiva de chuva era alguma, de acordo com os Sites de meteorologia. A nota dominante era a chuva e o céu nublado. Ao contrário disso, o “dia 1” revelou-se sem chuva, apesar do céu quase sempre nublado.
Numa das paragens, num semáforo, trocamos algumas palavras sobre o almoço. Ninguém tinha verdadeiramente fome, por isso continuamos. Foi só quando passamos Zufre que decidimos, ali mesmo na beira da estrada, que seria ali, naquela aldeia branca, plantada no meio das nuvens.
Zufre
Tinha feito numa outra pausa uma referência à falta de fortalezas, castelos e muralhas nesta parte da Andaluzia. Esta zona não era a fronteira com o mundo muçulmano (ou ameaçada pelas incursões portuguesas), mas seria expectável mais defesas. Não vimos. Até avistar Zufre. Esta pequena aldeia fica literalmente no céu, tal é a declive do serro onde foi construída. A subida é de tal forma íngreme, que impressiona.
Estacionamos na praça do “Ayunatamiento”, um edifício onde chegou a funcionar o tribunal da inquisição, bem ao lado da “Fuente del Consejo”.
A fonte por acaso até nos deu um bom conselho, já que subimos ao lado, a pé, por entre escadarias e ruelas com pouco mais de um metro de largura, que nos levaram a uma boa referência para almoçar. Uma tasca com aspecto de tasca, cheia de sonoros andaluzes. Lá dentro, nos fundos, passamos a uma segunda sala, já com menos aspecto de tasca, sem pessoas, mais calma. Espreitamos uma terceira sala, que nos revelou um acolhedor espaço, agradável, quente e com decorações recheadas de referências rurais. Escolhemos a mesa mais próxima da salamandra, que nos convidou ao esperado descanso e saboroso repasto.
A comida estava boa. Entre entradas variadas de azeitonas, queijo de cabra da região e presunto, seguiu-se uma omeleta de cogumelos. O que comer a seguir? A Andaluzia é rica na produção de “cerdo ibérico”, que melhor carne para degustar entre amigos, depois de tantas horas a andar de moto. Por sugestão da casa, comemos um dos pratos típicos de Zufre e do restaurante e um outro, que nos pareceu complementar toda aquela riqueza de paladares. Foi bem escolhido. Sobremesas e cafés e estávamos prontos para pagar a conta, que deu pouco mais de 10,00€ por pessoa. Esta é outra vantagem destas terras menos turísticas. Come-se muito bem por bem pouco!
Ainda fomos ver as vistas. Ao passar um cunhal de uma igreja, a base em “tijolo de burro” fez o Rui tecer uma reflexão sobre as técnicas de construção árabe e como estas estão na base da construção dos edifícios dos povos que lhes seguiram e como parte do nosso desenvolvimento se deve a isso. Zufre respira árabe. A Igreja da Puríssima Conceição (séc. XVI), por exemplo, como acontece com muitos dos nossos castelos e igrejas, foi construída em cima de um templo gótico mourisco, que por sua vez fora construída sobre uma mesquita, edificada durante a longa ocupação moura desta área da península ibérica. Uma nota interessante deste edifício foi ter requerido a reconstrução da torre sineira, em resultado do terramoto que destruiu parte do Algarve e Lisboa, em 1755.
As ruelas – autêntica mouraria – caiadas de branco alvo, estão cheias de vidas, que se cheiram ao passar por cada janela e cada porta. Algumas entreabertas, como que nos convidando a entrar e conviver.
Fico com a imagem de Zufre como uma espécie de farol, no meio do largo horizonte que se avista deste “pueblo”.
Com mais algumas dezenas de quilómetros rurais comprometidos com o pouco tempo de luz que tínhamos, seguimos directos a Sevilha e, dali, logo que nos foi possível, para estradas secundárias, que nos levariam até Ronda. Esta parte do trajecto é muito especial. O relevo, com planícies que se transfiguram em serrarias, para depois, no horizonte distante, avistarmos grandes penhascos, é gratificante. É uma das estradas (das que conheço) que mais gosto de fazer. É tão intensa quanto fácil. São muitas as curvas, mas o piso é tão bem feito, que o prazer de percorrer estes quilómetros não são condicionados por uma condução mais técnica e por isso necessariamente mais atenta. Cruzávamos a uma velocidade confortável, que permitia inspirar todos aqueles momentos e paisagens. Avistamos alguns “pueblos blancos”, ao longe, alguns onde já tinha ido mas, àquela distância, aquelas manchas brancas no meio do “mar” verde e castanho da terra é de facto algo que marca o viajante.
Rolamos com a chuva à nossa frente, sobretudo nas últimas dezenas de quilómetros antes de Ronda. O piso molhado indicava-nos isso mesmo, mas nunca chegamos a encontrá-la. De repente entramos num denso nevoeiro, que deu a atmosfera ideal para penetrarmos nesta parte da Andaluzia, onde o relevo se eleva ao mais alto nível do esplendor.
Quase a chegar a Ronda – que infelizmente não ficou registado por dificuldades técnicas nas duas máquinas fotográficas, uma ficou sem “memória” umas horas antes, outra sem bateria – um nevoeiro denso e serrado acompanhou-nos. Foi uma pena não termos conseguido registar a imagem das duas motos a circular por entre “nuvens”; merecia ter ficado para a posteridade. Ao menos ficou na memória.
Chegámos finalmente a Ronda, já a pouco tempo do lusco-fusco. Fomos para o hotel descansar um pouco e fazer tempo, já que o resto do grupo estava a cerca de 60 quilómetros de distância.
Pormenor (da clarabóia) no foier do hotel
Antes do jantar, já com quase todo o grupo reunido, demos um passeio higiénico por Ronda. Seguimos, por entre a temperatura quase negativa que se fazia sentir, até ao restaurante. Sem a preocupação da estrada, foi possível comer e beber bem. Quer em qualidade, quer na quantidade. A comida saborosa, o vinho bem escolhido, deste as várias entradas, até aos pratos principais, um primeiro de peixe e um segundo de carne, sem esquecer a sobremesa, tudo bem escolhido e retemperador das forças, para o dia que se avizinhava grande. No fim, o mentor e organizador deste passeio, José Matias, ainda "arranjou" umas castanhas em brandy, que já tinha comido, com outros amigos, também ali, no ano passado. Passou a meia-noite e as nossas penduras foram presenteadas com flores, cortesia do restaurante. Entretanto recebemos notícias que os nossos amigos Carlos e a Maria João vinham a caminho, directos de Lisboa; fomos para o lounge do hotel, onde passamos momentos muito divertidos, essencialmente a rir e a fazer rir. Quando chegaram, enregelados com o frio que passaram, tivemos tempos para os beijos e abraços da praxe e o grupo começou pouco depois a desmobilizar para os quartos, que já era bem tarde!
Dia 2 – de Ronda até Gibraltar
(ou um Dia dos Namorados diferente)
(ou um Dia dos Namorados diferente)
Antes do pequeno-almoço, tive tempo de espreitar as imponentes escarpas onde Ronda assenta. Bem lá no fundo, algum nevoeiro e uma forte corrente do rio despertam os sentidos. Quem já foi a Ronda não pode deixar de ficar assoberbado da forma como construíram a ponte que liga as duas partes desta cidade. É, no mínimo, assombroso olhar lá para baixo. Mais do que escrever… só as imagens anteriores mostram o que quero dizer.
Depois do pequeno-almoço, fomos buscar as motos à garagem do hotel e forçados pelas nossas “namoradas” a contornar a pé o quarteirão. Assim que chegamos novamente às motos… foi com surpresa que vimos os autocolantes em forma de coração, que entretanto colaram nas motos. Foi a surpresa delas para este Dia dos Namorados especial e diferente, ideia da Vera e trabalho de recorte dela e da Tita. Todas ajudaram a salpicar as motos com corações…
Seguimos logo depois, pela serraria de Ronda, até à costa Sul da Andaluzia, por entre montanhas muito especiais, devido à quase ausência de solo fértil nas escarpas, tornando a viagem mais árida e muito imponente, tal é a sucessão de curvas e contracurvas ladeadas de pedra de um lado, com o precipício do outro…
Uma paragem na base do castelo de Águila, onde é possível ver a ponta do rochedo – Gibraltar – assim como África.
Ao fundo Gibraltar e África
Uma nota de humor do Carlos Coelho, explicando as vantagens do saco à prova de água para papel higiénico
Lá chegamos a La Linea de La Concepcion, que faz fronteira com Gibraltar. Transpor a linha de fronteira é mesmo chegar ao Reino Unido. Os estilos arquitectónicos, e tudo o resto, respira inglês!
Fizemos o circuito turístico: a Ponta da Europa, para umas fotos de grupo; seguimos para o canhão de 100 toneladas, mas só aceitavam libras; dali até à Upper Rock, onde está uma reserva natural com os últimos macacos selvagens da Europa. Isso ou a desculpa para rentabilizar e cobrar algumas libras para visitarmos algumas das mais emblemáticas atracções turísticas deste território britânico. Ainda assim, vale bem a pena.
As motos no “Europa Point”
Começamos por “St. Michael’s Caves” (grutas de São Miguel). Impressionantes! Foram aproveitadas pelos ingleses como hospital em 1942, entretanto reconverteram uma grande nave de rocha em auditório, com uma acústica muito boa acrescente-se, eventualmente devido às estalactites e estalagmites, assim como pela “cova” de mais de 200 metros, que acreditavam os antigos descer até ao inferno!
Já tinha ido a Gibraltar outras vezes, mas acabei por nunca visitar os “macacos”. Sobre estes, tenho a dizer que são muito calmos. Ao contrário dos avisos, estiveram sempre observadores e até interagiram com algumas pessoas do grupo.
Algumas pessoas do grupo foram visitar os túneis, utilizados na Segunda Grande Guerra, já que Gibraltar era (e é) uma importante defesa militar, outros descansamos por ali, com os macacos a observarem-nos de perto.
Ali de cima, nunca deixo de pensar na facilidade que foi para os povos muçulmanos terem transposto os poucos quilómetros que separam os dois continentes. Está ali tão próximo, quase que podemos tocar África.
Descemos pouco depois, passando o castelo dos Mouros, que também ocuparam este rochedo em tempos idos!
Antes de sairmos de Gibraltar, a cancela do aeroporto fechou o troço de estrada que é parte integrante do aeroporto. Passou um bimotor a hélices e logo reabriu a estrada que nos levou a sair de terras do Império de Sua Majestade a Rainha Isabel II.
Já em La Linea de La Concepcion, almoçamos e o grupo seguiu para Ronda e eu e a minha pendura, para Faro. Com a noite a poucas horas de distância, fomos directos para Sevilha e dali até Faro. Depois de um fim-de-semana com pouco sol mas seco, fizemos a viagem por entre ventos fortes e chuva. Muita chuva. Como sempre, chegamos a casa com os corpos secos e muita vontade de partir novamente… com chuva ou sol, veremos para onde.
E um obrigado muito especial ao grupo, por estes agradáveis dois dias!!
2 comentários:
Bom passeio, espero poder ir no próximo, fiquei mesmo, mas mesmo com uma grande vontade! Não querem repeti-lo em Abril ;-)
lol
Obrigado Jorge, por o partilhares aqui.
sérgio afonso
Olá Sérgio!
Por princípio não gosto de repetir os sítios para onde vou, já que existem tantos outros para descobrir. Por vários motivos, este princípio não se aplica a Ronda. É uma terra de cortar a respiração. Certamente vamos lá voltar, até porque Setenil de las Bodegas, assim como alguns outros Pueblos Blancos (ali por perto) têm ficado por descobrir. Um dia destes combinamos nova descida...
... mas daqui a uns tempos vamos lançar umas provocações... estamos a ser provocados para isso!!!
Abraço!
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