2010/02/04

O coleccionador de mundos

Por: Jorge Lami Leal


A expressão [no título] não é minha; acho-a soberba! Há muito que viajar de avião não me atrai particularmente… de carro assim-assim. Não só pelo que tem acontecido nos últimos anos, também pelo excessivo controlo e cerceio de algumas liberdades, de alguma forma compreensível, mas sobretudo pela falta de experiências que nos garante. Estamos fechados do mundo por algumas horas. Não digo que nunca mais o farei, até porque a minha idade não permite afirmações tão peremptórias, mas não consigo imaginar investir recursos em viagens, pelo menos nesta fase da minha vida, que não seja em cima de uma moto. Quando muito deslocar-me de avião, para reencontrar a moto, entretanto “encaixotada” e despachada para um ponto mais distante, para seguir depois, ainda mais para lá ou de regresso para cá!

Não sou particularmente dado a objectivos de longo prazo. Os que tive até aos 18 anos foram concretizados entre os meus 25 e os 30 anos. Embora defina, por uma questão de higiene mental, um objectivo mais “operacional” por ano. Tento cumpri-lo e chega!

Com 36 anos, conheço mais de 20 países, centenas de cidades, vilas e aldeias. Por isso, quando li esta expressão “coleccionador de mundos”, pensei logo como dava um bom objectivo de vida. Daqueles saborosos! Conheço no fundo tão pouco ainda… mas tenho em mim a vontade e ambição de partir e resolver essa falha. “Coleccionar mundos” passou assim a ser uma expressão com que me identifico e que até pode ser uma quasi-filosofia de vida. Até permite imprimir em t-shirts e autocolantes!!

A essência do viajante de moto não pode ser, para mim, a própria moto. Isso seria redutor, sobretudo para o viajante. Primeiro somos viajantes, não interessa o que nos leva, nem para onde vamos. Qualquer pessoa pode sê-lo. Até os que não viajam! Sim, o que interessa aqui é a vontade: de conhecer, de viver, de experimentar, de conviver, de interagir, de vivenciar toda uma série de sentimentos e sentidos. Mesmo aqueles que, por qualquer motivo, não o concretizam, podem-se assumir na mesma como viajantes. Nem que sejam virtuais, mas podem sê-lo! Hoje viaja-se bastante com o computador, estimulando a visão e pouco mais, mas abrindo as portas da percepção. Para mim, claro, isso não chega, não é suficiente. Por isso milito nesta espécie de religião – o meu dever sagrado, o meu Graal: partir sempre que possa; regressar sempre que consiga!

Prefiro esta expressão do que a de devorador de mundos. Mas no meio destas, aprecio a de sorvedor de mundos. Existem continentes que, para já, pelos motivos mais óbvios, não consigo chegar. Limitações decorrentes da vida profissional, tempo sobretudo, impedem-me de concretizar algumas viagens. Espero sobreviver ao meu trabalho, para um dia lá chegar. Mas não será a distância que marca, que define o viajante. Acima de tudo é a vontade. Se a Austrália, a América latina ou a Índia estão para além do tempo que merecem, dois meses de viagem no mínimo, aqui bem à mão e num raio de 10.000 km estão lugares tão diferentes entre si. Das estepes siberianas ao Norte de África e Médio Oriente (próximo), passando pelos países de leste ou pelos escandinavos, estão destinos cheios de diferenças para descobrir. Estas diferenças estão à nossa “mão” e a distâncias razoáveis, para o tempo que normalmente dispomos para investir nesta necessidade que é viajar.

Este monstro, que quem gosta de partir tão bem conhece, alimenta-se com passeios mais curtos, mas de quando em vez, necessita ser saciado com algo mais cru e brutal. Com mais quilómetros e maior distância. Estas largas dezenas de milhares de quilómetros por onde já andei nada são, face aos que espero ainda percorrer.

A moto, qualquer que seja a marca, a cilindrada, o estilo, a idade, é a antítese do casulo dos restantes meios de transporte. Na moto estamos com os elementos. Somos mais um elemento. Não sentimos a protecção do ferro que nos envolve… e sufoca. Pelo contrário… é também esta força interior e exterior que me atrai. É o facto do nosso cansaço, próprio das tiradas mais longas, constituir no fim da viagem, depois de descansados e aptos a reinterpreta-la através das fotos e das memórias, uma parte indelével deste todo que é viajar de moto.

Espero ter desassossegado algumas pessoas, despertado alguns sentimentos, já que falamos tanto na cultura pré-formatada que encontramos nas livrarias, nos teatros, nas galerias de arte ou no cinema, onde experimentamos tudo aquilo que nos dão, da forma como nos querem dar, ainda que nos permita um maior ou menor grau de interpretação, mas não deixa de estar compartimentada. Viajar é tudo isto, mas o livro está em branco para que possamos escrever o que quisermos, assim como a tela, branca, para pintarmos o que entendermos, ou com a câmara na mão, apontá-la para onde a nossa sensibilidade nos impelir e disparar. O palco é todo o espaço que percorremos. A interpretação é total e não tem grandes limites criativos que não a nossa experiência, limitações individuais, preconceitos e até o estado de espírito num dado momento. Somos nós os criativos. É a nossa arte.


Bem a propósito do que quero reflectir com este texto, escreveu Fernando Pessoa, no “Guardador de Rebanhos”, através do seu heterónimo Alberto Caeiro, “(…) eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura.”

O mundo está lá fora. Tão rápido quanto o tempo que levamos a desligar aqui e partir por aí!

Coleccionemos vidas, cheiros, sabores… coleccionemos experiências… coleccionemos mundos!

7 comentários:

Rui V. Gago disse...

"Não sentimos a protecção do ferro que nos envolve…"

Vê-se mesmo que não tens uma GSA! Nós, os felizes proprietários da melhor moto do mundo e arredores galácticos, temos essa sensação... a da protecção do ferro!!! ;-)

Rui V. Gago disse...

Ah...
E ainda sentimos tudo aquilo que bem descreveste!!!

Jorge Lami Leal disse...

Protecção do ferro... LoL

Francisco Coelho disse...

É isso tudo amigo ...
É isso tudo que vai aqui dentro!
Deve ser alguma espécie de vírus para o qual a única cura é ... pegar na mota e partir ;-)

Anónimo disse...

Mais do que ficar "desassossegado" pela crónica fica-se também nostálgico por pensar no tempo que vai fugindo, inutilmente, todos os dias, com ideias, intenções, vontades...há que concretizar, perder os "medos" e colocá-las em prática...e partir.

Pedro Bastos

Jorge Lami Leal disse...

Francisco: Cura!?!?!? Só se quando chegar ficar logo, logo, logo infectado outra vez... e desejoso que chegue a cura seguinte!!! rzrzrzrz

Pedro: Pois é. Perdemos tanto tempo na vida a dormir e a trabalhar... que sempre que se consiga... lá vamos nós! ;-) Ronda é já dia 13, não vens? :-p

Sandra Lami Leal disse...

É isso, é tudo o que dizes...
.. ir na serra e sentir o cheiro dos eucaliptos... passar pelo meio de uma aldeia e sentir o cheiro do pão a cozer em forno de lenha...
... ir pela costa e sentir o cheiro do mar... seguir e sentir o salitre na pele...
... é acenar a quem nos acena...
...é partir e regressar... juntos!!!
Sim, já fizémos alguns quilómetros, que espero sejam poucos em relação aos que ainda vamos fazer... juntos!!!
E não te esqueças da viagem à Austrália e da viagem à India... juntos... por todos os meios, excepto avião?!