Por: Jorge Lami Leal
O que é ser “motociclista”? Existe um conceito bem definido ou é um apodo? Alguém é golfista simplesmente porque joga golfe nos seus tempos livres? Do conjunto das actividades profissionais e pessoais que desenvolvemos, andar de moto deve ser assim tão qualificativo? Vivemos numa sociedade de epítetos, mas isso não significa que todos sejam apropriados, ou que concordemos com a definição mais comum. Chamar alguém de “motociclista” não é mais do que tentar defini-lo, quanto a mim, de uma forma demasiado simplista e linear, apenas pelo transporte que utiliza. Ser “motociclista” é bem mais do que isso.
Escalpelizemos o conceito. Um “motociclista” pode ser definido como alguém que anda de moto, não vive em função da moto, mas esta desempenha um papel importante no seu quotidiano e serve de fio condutor a uma parte afirmativa da sua vida pessoal, sobretudo nos tempos de lazer, nas viagens. Não tanto por andar de moto, mas porque desenvolve uma série de actividades em que se faz acompanhar dela, enquanto potenciadora de sensações.
Quantos ditos “motociclistas” deste País se limitam a sê-lo entre a sua residência e o trabalho, numas idas ao café e pouco mais? Acredito que são a maioria! Mais do que antes, mas ainda assim muito poucos são os que se aventuram e viajam de moto por este pequeno grande mundo a nossos pés, ou que a utilizam para algo mais do que um simples (e num sentido mais literal) meio de transporte, cómodo e prático. Não digo com isto que quem anda pouco de moto não possa ter o “verdadeiro” espírito “motociclista”, que vive a moto e as viagens quase como um culto e um estilo de vida. Claro que pode! Existem pessoas que pelos mais diversos motivos, não andam tanto quanto gostariam. Não é pois pelo número de quilómetros feitos que se define um “motociclista”.
Nem todos os que têm uma moto na garagem têm este espírito, muitos ignoram por exemplo o facto de pertencermos a uma espécie de comunidade informal, que pouco se nota, a não ser quando nos cruzamos com outro “motociclista” e levantamos a mão no ar, num fugaz mas inclusivo cumprimento, comportamento que tenho visto perder-se paulatinamente nos últimos 10 anos, precisamente com o aumento do número de motos em circulação, o que não deixa de ser estranho ou até curioso. Daí o meu problema com o conceito, pela abusiva generalização que permite, ou porque não me revejo em muitos comportamentos que vejo na estrada… e acabo por ser mais um “deles”, apenas porque estou a circular em cima de uma moto!
As organizações que poderiam ser “incubadoras” de “motociclistas” – os motoclubes, em especial os de bairro ou cidade – porque normalmente têm sedes próprias onde é possível realizar encontros regulares, muitas vezes não têm este mérito. Mas apesar de reunirem dezenas ou centenas de pessoas, a maioria pouco anda de moto. Muitos nem têm o culto dos “anciãos”, pessoas com mais anos em cima da moto, a viajar, com muitos quilómetros de experiência em passeios e viagens, com referências idóneas em termos do seu comportamento na estrada e porque não na vida, com ética “motociclista” e ensinamentos válidos para dar, ou apenas histórias e estórias para inspirar os mais novos.
A sociedade contemporânea pouca importância dá à idade. O que antes era um “posto”, um “estatuto”, hoje está completamente desvalorizado. Perde-se por isso parte do que fomos, pois não ouvindo contar, não se conhece, não se aprende, não se faz, não se volta a contar, a ensinar. É a vida, rápida, com pouco tempo para ouvir.
Vejo também com um sentimento misto de gozo e de pena um sem número de carrinhas e reboques que transportam as motos por exemplo para a concentração de Faro (refiro esta porque resido em Faro). Estas pessoas perdem desta forma a melhor parte de qualquer passeio: a ida e o regresso!
Pessoalmente não gosto de ser comparado com uma miríade de pessoas que utilizam moto sem qualquer respeito pelo próximo ou mesmo por si. Na última viagem que fiz, no final de Julho, saí de casa (Faro) numa sexta-feira, que coincidiu com a concentração de Faro, mas como passei o fim-de-semana no Alentejo e só continuei a minha viagem no domingo, partilhei a estrada com largas dezenas de “motociclistas”. A maioria regressava de forma normal e mais ou menos ordeira. Mas destacaram-se alguns “animais” (seria o epíteto mais apropriado para alguns deles) que passavam por mim acima dos 200 km/h, dentro da minha faixa de rodagem, a poucos centímetros de mim, colocando-me (e à minha pendura) em perigo. Alguns seguiam a velocidades vertiginosas, mas apesar disso vestiam calças de ganga, t-shirt e ténis, sem luvas, sem protecções. Muitos com os escapes ao rubro, com um som justificado em autocolantes que dizem: “Loud Pipes Save Lives” ou na esperança de ganhar 2 cv extra, que não fazem grande falta a motos tão leves, já com tanta potência. Curioso, pois passaram por mim algumas motos de pista, com silenciadores de origem, seguindo à mesma velocidade que as outras, sem aquele barulho ensurdecedor. São opções? Sim. Um problema de educação (comportamento) e civismo? Talvez, mas todos os que regressaram a casa naquele dia foram certamente jogados no mesmo saco pelos automobilistas que viram os comportamentos dos tais “animais”. As generalizações têm destes problemas.
E cá está onde queria chegar. O tal conceito de “motociclista”, que pelos vistos pode ser desagregado em vários. O meu tem uma conotação mais próxima de alguém com um “espírito nómada”, no sentido aventureiro do termo, de busca de aventuras, de experiências, de cultura e conhecimento, atingindo por via das viagens e das experiências. “Viajante” ou “viajante de moto” será para mim o que traduz mais fielmente o tal conceito de “motociclista”. Onde a moto não é um mero transporte, mas uma catapulta potenciadora de sensações e emoções, face às possibilidades que permite, desde logo na gestão dos itinerários, na absorção de cada milímetro do percurso, da possibilidade de sentir os cheiros, as mudanças de temperatura ou da humidade do ar, as variações no piso, a altitude, o relevo que vai mudando, a arquitectura que se altera com o passar dos quilómetros, o material utilizado nas construções, a inclinação dos telhados nas zonas mais chuvosas, ou as casas caiadas de branco nas mais quentes. Permite ainda sentir o calor nas terríveis planícies que experimentamos no Verão, ou aquelas curvas simpáticas e amenas que se seguem encadeadas, quando protegidas pela sombra de grandes árvores: vive-se a estrada que percorremos. Não se vai apenas até ao destino, chega-se lá integrando e interagindo com os elementos, com a distância, até connosco, quando nos permitimos perder nos pensamentos. O caminho é uma parte importante do prazer de viajar.
E afinal onde ficamos? Existe um conceito? Bom... que importa o conceito!?! Tracemos o caminho e deixemos o resto para os que nos vêem passar…
Vamos andar de moto!
1 comentário:
Boa Lamy como de costume uma análise sobre um tema antigo mas sempre actual.
Boas curvas
J Manuel PTM
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